Como funciona a memória coletiva
- Andreia Ferreira Campos
- 27 de jan.
- 6 min de leitura
A nossa memória coletiva só funciona com palavras. Não há quadros, músicas ou esculturas que permitam a validação da história sem recorrer à linguagem. Nas comemorações dos 80 anos da libertação de Auschwitz, escrevo-lhe sobre como funciona a memória coletiva e que contributo tem para a humanização da sociedade global. Este é um artigo que não gostei de escrever, senti-me “obrigada” a fazê-lo porque o mal banal ataca o poder, outra vez.
Em 27 de janeiro de 1945 os campos de concentração de Auschwitz foram libertados do terror nazi, dia este que é comemorado mundialmente como o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto.
80 anos depois…
A 27 de Janeiro de 2025 fui buscar o meu livro Eichmann em Jerusalém, Uma reportagem sobre a banalidade do mal de Hannah Arendt, para reler as notas que tinha feito e as citações que havia sublinhado.
Encontrei o livro no fundo de uma pilha de outros livros, no local mais escondido da minha pequena biblioteca. “Muito adequado” – pensei – “este não é um livro fácil de ler”. Um livro que abala as convicções mais otimistas sobre a nossa humanidade, no entanto é imprescindível para nos compreendermos como seres humanos. O que nos motiva para agir em nome do bem-estar dos outros e o que nos motiva a colaborar com o mal de formas tão extremas.
A inclusão requer empatia. Um dos destaques que fiz ao ler Arendt pela primeira vez, realça a incapacidade de Eichmann sentir empatia.
«A fanfarronice é um vício comum, mas a personalidade de Eichmann tinha um defeito mais específico, e também mais decisivo: uma incapacidade quase total de olhar as coisas do ponto de vista do outro.» Hannah Arendt
Quando se quer criar uma guerra, seja comercial, seja militar, é preciso despersonalizar os supostos inimigos. Olhar para os outros seres humanos como objetos, ou como diziam os nazis ‘peças’ que tinham de ser transportadas. O tratamento animalesco que foi dado aos judeus contribuiu para esta desumanização.

Os alemães não tinham todos um ódio visceral aos judeus, deficientes, homossexuais, cristãos, e ciganos. Foram aculturados para olhar para todas estas pessoas como menos humanas. Tinham o seu trabalho, as suas ordens e não se permitiam sentir empatia pelos menos favorecidos pela sorte.
Algo idêntico parece estar a acontecer nos Estados Unidos, com a deportação em massa de emigrantes a ser realizada como se fossem todos criminosos. Mais uma vez, um país prepara-se para criar inimigos entre os que contribuíram para a sua própria edificação. Mais uma vez, as pessoas não se revoltam contra a desumanização, porque não querem perder regalias. Por medo de não pertencer à multidão dos supostos vencedores.
O erro de Descartes uma e outra vez
A ausência de empatia desregula a moralidade pessoal. A propaganda aplicada pelos governos e detentores de redes sociais, normaliza o mal, banaliza a desumanização em relação a grupos de pessoas vistos como inferiores.
No século XVII, René Descartes dissociou o corpo da mente, dando à mente a primazia sobre as necessidades do corpo. Vários séculos passados, reconhecido o erro, continuamos a racionalizar e a esquecermo-nos de uma importante componente da inteligência humana: o sentir.
Usamos as palavras para justificar ações inaceitáveis. Evitamos outras palavras para fugir aos julgamentos da consciência.
A mentira passa a ser outra coisa qualquer, mais benigna, porque é o que toda a gente faz, ou seja é um mal banal. Esta banalidade leva à normalização da mentira. É a desculpa da sociedade perante algo de extremamente errado que se faz constantemente. Os meios justificam os fins, em nome de algo supostamente maior, de uma felicidade futura, os procedimentos moralmente errados normalizam-se, tornam-se a lei (seja lei oficial ou percecionada por cada pessoa como lei).
Cria-se a autoilusão de que se todos mentem é porque alguém tem razão e a verdade não deve ser importante. Com o tempo, as mentiras repetidas passam a ser consideradas, por muitos, como a verdade, e a ilusão de individual passa a coletiva, e agiganta-se.
Eichmann usava a linguagem administrativa para se defender das acusações e dizia repetidamente o palavreado oco, vazio, ou seja sem a complexidade das emoções humanas para criar a imagem total do contexto em que as suas escolhas mataram milhões de pessoas.
Atualmente, ouvimos palavras ocas com ameaças, que devem ser levadas a sério, de alguns líderes atuais. Por vezes, duvidamos de que saibam o que dizem, de tão irreais que parecem os seus discursos.
A falta de empatia provoca défices de linguagem.
Podemos dizer as mesmas palavras sem que o seu significado seja igual para ambos. Aliás, um dos traços do autismo é a dificuldade em sentir empatia, como resultado temos sintomas de défices de linguagem que se caraterizam por palavreado repetitivo e descontextualizado, desligado da realidade.
Uma das descobertas de Arendt, na sua investigação jornalística que deu origem ao livro sobre a banalidade do mal, foi que Eichmann tinha uma perturbação de linguagem desde a infância. Esta perturbação é descrita como afasia.
O diagnóstico, demasiado vago, talvez não seja muito correto face aos critérios de diagnósticos atuais, mas é evidente a existência de uma dificuldade no acesso às palavras. O que o levou decorar a linguagem administrativa do terceiro reich e a usá-la para as suas comunicações oficiais e pessoais.
A complexidade da linguagem resulta da integração das informações que recebemos dos sentidos, em conceitos que depois associamos a palavras. É por isso que ninguém aprende uma língua a decorar o dicionário.
As línguas estão vivas porque a linguagem tem de ser vivida com o corpo, a mente e o espírito (ou consciência) plenamente integrados. Os significados das palavras têm uma cor emocional nas pessoas autênticas. O carisma revela essa cor, a autenticidade de quem fala o que sente.
Anestesia geral
O que se passa que parece que mais de meio mundo anda anestesiado e não sente o sofrimento alheio como seu? Como resolver esta crise de empatia?
A perceção de que os novos nazis são muitos e mais fortes é fictícia, controlada por algoritmos e pessoas que vivem dentro das suas cabeças e desabitam o seu próprio corpo.
Nunca foi tão fácil o isolamento social como na era da plena conexão das redes sociais. Através de um ecrã é fácil ignorar as emoções, desligar da inteligência do subconsciente. O difícil é manter o desenvolvimento integral e a harmonia que dele resulta. É necessário ter conhecimento sobre desenvolvimento e fazer escolhas conscientes para não cair na armadilha da desumanização.
Pessoas não são números de uma folha de excel. O valor da vida humana não se mede pelo valor da conta bancária de cada pessoa. O valor pode ser criado sem que haja qualquer dinheiro envolvido. A questão é que esta anestesia geral em que parece que vive a sociedade global é reflexo de uma crise de valores.
A educação como valor
A saúde é um direito universal, em alguns países, e a educação também. A forma de criar e manter uma memória coletiva que nos permita evitar as lideranças vazias (como as da extrema direita), é evocando as memórias coletivas de fases negras da história que conduziram ao sofrimento de toda a humanidade.
Se vamos ou não superar este conjunto de crises que vivemos e colaborar para a criação de uma nova ordem mundial pacifica, depende de cada um de nós.
As escolhas pessoais que fazemos, no acesso à informação, no nosso desenvolvimento pessoal contínuo, na aceitação de meias verdades simplistas desligadas da realidade que nos coloca uns contra os outros, são a resposta ao ataque do totalitarismo.
A Europa une-se para mostrar o seu valor económico e político, face a ameaças vindas do outro lado do atlântico e dos controladores de algoritmos. A geopolítica agita as águas da informação em todos os canais de difusão.
A vida diária combate a banalização do mal com medidas de inclusão e educação. De valorização dos direitos humanos e evocação da memória dos terrores vividos na Europa durante o holocausto. Cada memória evocada grita: “NUNCA MAIS”, para que o totalitarismo não se aproveite da amnésia de gerações que não viveram esse sofrimento e que não sentem a gravidade das ameaças que estão a ser feitas à paz. Quem sempre viveu em paz, facilmente, vê a possibilidade de uma guerra como algo distante, de irreal.
Portugal tem ainda muitas cicatrizes internas que resultam da guerra colonial. Por isso, e pelo contexto internacional, é imprescindível educar para a paz. Educar para preservar as memórias do passado e apostar num desenvolvimento da linguagem que eleve o potencial humano de todas as gerações.
A linguagem é um reflexo da nossa humanidade e desumanidade também. É a ferramenta do pensamento que nos dá acesso ao mundo, à complexidade da imagem completa da realidade, por oposição às imagens parciais que a propaganda de extrema direita nos quer vender como verdadeira.
Para terminar deixo uma segunda sugestão de leitura, um clássico do pós-holocausto. O relato na primeira pessoa dos horrores dos campos de concentração nazis. O livro é Se Isto É Um Homem, de Primo Levi. Por não podermos falar do que não sabemos, a melhor forma de compreender é lendo os relatos de quem sabe. É assim que nos mantemos humanos face a tragédias que, felizmente, não sofremos.
Viva Integralmente,
Andreia
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