top of page

As lições do Gustavo




Uma perturbação do desenvolvimento na infância poderá ser uma vantagem? Ou serão as crianças com dificuldades de desenvolvimento os azarados no jogo da vida? As lições do Gustavo são um exemplo de superação em curso, que nos apontam para o processo de evolução da humanidade. Quer evoluir connosco? Continue a ler este artigo.


Milagre da Vida


O encontro de duas células que se unem e multiplicam para criar um novo ser humano é um processo milagroso.


Há tantas etapas que podem correr mal até ao nascimento do novo ser que as possibilidades de um nascimento saudável deviam ser muito menores do que são. No entanto, a grande maioria dos bebés nasce sem problemas de saúde.


A tudo o que contraria as probabilidades e as normas chamamos milagre ou sorte, outros chamam destino ou carma.


Portugal é um país onde as superstições persistem apesar dos factos. Muitas dessas superstições estão associadas a mitos e crenças religiosas. Por isso, vamos pensar naqueles em que “ninguém pensa”: os não-milagres, as crianças que nascem com alguma doença ou perturbação do desenvolvimento. Será que deus não gosta delas? Porque não tiverem direito ao seu milagre logo à nascença?


Evolução da Espécie


Quando algo se desvia da norma no processo de desenvolvimento as crianças desenvolvem competências que de outra forma não seriam plenamente desenvolvidas.


Vou dar-lhe um exemplo.


Uma criança com défice auditivo evolui com uma maior mestria nas competências associadas à visão, às texturas e pode até desenvolver competências extrassensoriais. Na infância estes excessos de desenvolvimento são por norma considerados problemáticos, pela falta de referências no que toca ao desenvolvimento integral e pelas evidentes lacunas nas áreas relacionadas com o que a criança não consegue fazer.


Muitas vezes, os profissionais conseguem avaliar o que falta, não o que está mais desenvolvido do que o esperado (os testes de avaliação não são desenhados para isso e a perspetiva integral não é ensinada no ensino superior).


Uma vez ultrapassada a doença que leva à perda auditiva (quando é possível curar), o desenvolvimento continua desequilibrado. As redes neurais associadas à audição funcionam como músculos e não foram ativadas por falta de informação auditiva.


A terapia da fala vai promover uma aceleração na ativação dos processos relacionados com a audição para que a fala ganhe terreno em relação ao ritmo de desenvolvimento natural.


Gradualmente, a criança evolui mais rapidamente e atinge os níveis de desenvolvimento da fala considerados adequados para a idade.


É quando estas crianças atingem os níveis de normalidade da fala que se percebe que nunca serão normais.

Superadas as dificuldades de desenvolvimento, as crianças “não-milagre” ficam com um conjunto de competências que as leva para performances excecionais em algumas das áreas que foram mais usadas em idades precoces, quando o seu desenvolvimento estava desequilibrado.


Tendências Globais do Desenvolvimento Humano


O pensamento divergente é a capacidade de encontrar múltiplas soluções inovadoras para problemas convencionais ou não convencionais.


Esta forma de pensar está associada ao lado direito do cérebro e, durante muito tempo, foi considerada exclusiva dos artistas e inventores.


Depois a ciência explodiu. E o método científico passou a usar-se em todas as áreas, das ciências naturais às várias engenharias. A complexidade atingiu o mundo de tal forma que as ciências e as técnicas começaram a mesclar-se em equipas multiprofissionais.


As especializações eram suficientes numa sociedade em que os papéis profissionais estavam bem definidos e a organização era duradoura. Agora, a especialização é necessária quando faz parte de um todo que vê mais longe, uma equipa que complementa a visão parcial do ultra-especialista com uma visão sistémica.


Os problemas complexos requerem soluções inovadoras, de pensadores que saiam fora das convenções. É por isso que o Design Thinking é uma tendência global do desenvolvimento humano.


O pensamento divergente é crucial na etapa de ideação do Design Thinking.


Esta é a forma de pensar natural das crianças com perturbações graves ou severas do desenvolvimento infantil, e manifesta-se após os défices de desenvolvimento estarem resolvidos.


Este rapaz mantém-me humilde!


Apresento-lhe o Gustavo! O que para si é um grande privilégio, acredite.


Quando o conheci ele tinha 3 anos e meio e diziam que falava chinês. Ninguém percebia nada do que ele dizia. Os pais explicaram-me que o filho não dizia frases apenas algumas palavras. O Gustavo tinha os olhos tão tristes como os de um adulto deprimido a tomar Prozac há uma série de anos e a não ver o fundo do túnel, muito menos a luz.


Ao começar a falar com este rapaz percebi logo que ele me ia dar dores de cabeça. Disse aos pais: “Ele faz frases, mas só com as vogais”. Era por isso que ninguém o percebia. Tinha apenas duas consoantes na fala, o que tornava a compreensão da fala do Gustavo um processo de adivinhação.


O diagnóstico foi imediato: Apraxia da Fala na Infância. Uma dificuldade na programação motora da fala que está relacionada com a subativação de algumas áreas do cerebelo (esta é uma explicação simplista, mas para os não terapeutas da fala é suficiente).


Movimentos de braços para promover a respiração integral - por o primeiro movimento da fala é a respiração.
Movimentos de braços para promover a respiração integral - por o primeiro movimento da fala é a respiração.

Quando a origem de uma dificuldade de desenvolvimento é motora, temos de trabalhar o movimento antes de tudo o resto. Progressivamente, integramos as atividades da terapia da fala mais convencional nas sessões de terapia do Gustavo.


Nem vale a pena referir que o Gustavo começou a falar de forma cada vez mais inteligível, caso contrário qual seria o objetivo de lhe contar esta história?


A fala aproximou-se do normal, o sorriso voltou aos olhos do Gustavo, as ideias que conseguia transmitir surpreendiam tudo e quase todos por serem tão inesperadas.


As pessoas que o conhecem começaram a dizer «Não sei onde é que ele vai buscar estas coisas.»


E a terapeuta da fala dele (sou eu) começou a receber uns banhos de humildade.


Sempre que estava quase tudo resolvido e pensava que o Gustava ia ter alta, aparecia mais um problema para solucionar. E depois o processo repetia-se, outro obstáculo. Andava-mos para a frente, depois tínhamos de voltar atrás e reintroduzir as mesmas tarefas com diferentes níveis de complexidade.


A terapia da fala do Gustavo seguiu um rumo de ioió. A boa notícia é que ele não deixou de evoluir. O que parecia não ser bom é que as soluções não vinham nos livros, nem nos artigos científicos.


As aparências iludem taaaaanto!


Quando se abordam temas como a apraxia da fala da infância a evolução espectável é muito mais lenta do que a do Gustavo, por isso ninguém escreve sobre estes reveses. O que significa que estamos a começar algo novo.


Muitas vezes disse aos pais do Gustavo, “isto é experimental”. E experimentamos, juntamos técnicas, intuições, analisamos os resultados e procuramos sempre novas soluções.


E o futuro?


No cérebro o trabalho é repartido. Algumas áreas são mais ativas numas tarefas do que noutras, embora as redes neurais tenha um trabalho de equipa multidisciplinar, em que neurónios de diversas áreas são ativados sequencialmente de forma a executar a mesma tarefa.


A fala está confinada ao hemisfério esquerdo. É UM MITO!


A fala é o mais complexo e sofisticado de todos os movimentos humanos. Uma das razões desta complexidade prende-se com o facto de a fala ser multidimensional, ou seja envolve o corpo, a mente e o espírito (ou consciência). O que significa que quando falamos todo o cérebro está ativo, embora umas áreas estejam mais ativas que outras.


Quanto maior a ativação neural durante a fala maior a presença da pessoa que está a falar. A presença é outra das tendências globais do desenvolvimento humano.


Num cérebro "normal" a ativação é diferente da do cérebro de uma criança que superou uma perturbação do desenvolvimento, como o Gustavo.


Nas nossas buscas por soluções, algumas vezes dei comigo a pensar, “estás a usar o hemisfério direito”, por isso é que o sinal à esquerda é menos ativo.


As dificuldades motoras precisam de mais tempo de prática. A prática da fala no Gustavo surgiu mais tardia no que toca à complexidade dos movimentos. Estamos próximos da etapa em que a prática da fala atinge os níveis que permitem ao Gustavo ter a maturidade da experiência a falar com ele.


O facto de a terapia da fala ter seguido o paradigma do desenvolvimento integral permitiu a alternância entre diferentes velocidades de pensamento. A maior lentidão na execução motora não impediu a progressão contínua da velocidade acelerada dos processos de pensamento do hemisfério direito.  


Conhece a expressão só usamos 10% do nosso cérebro? Não é bem um mito, ainda.


Agora imagine um adulto numa equipa de profissionais a resolver problemas a usar 20% ou mais do cérebro a cada momento. No futuro a integração das competências que o Gustavo desenvolveu "a mais", com as competências que demorou mais tempo a desenvolver representa a evolução da espécie.


Só o presente é real


Atualmente, o Gustavo aprende duas línguas estrangeiras na escola e tem aproveitamento de Bom a ambas: inglês e … mandarim.


Agora já é verdade que ele fala chinês.

 

Viva integralmente,

Andreia

Comentários

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação
bottom of page